terça-feira, 7 de abril de 2009

Ilya Prigogine

Os movimentos de um universo pluralista

Ilya Prigogine, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1977, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 26-03-2009, analisa o significado da realidade, que, segundo ele, não pode ser dissociado do significado do tempo. "Para nós, o tempo e a humana existência, e, por conseguinte também a realidade, são conceitos indissociáveis. Mas, é necessário que seja assim?", questiona Prigogine. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



Graças às descobertas mais recentes, a matéria não nos aparece como passiva, como queria a visão mecanicista do mundo, mas está associada à atividade espontânea. Uma mudança tão profunda que faz pensar num novo diálogo entre homem e natureza. Uma antecipação da “Carta Internacional”.

Certa vez, o jovem Werner Heisenberg foi fazer uma excursão com Niels Bohr. O que segue é o conto daquilo que Bohr disse quando chegaram ao Castelo de Kronberg: “Não é estranho o modo como muda este castelo ao imaginarmos que Hamlet viveu aqui? Como cientistas pensamos que um castelo seja feito somente de pedras e admiramos o modo pelo qual o arquiteto as conectou. As pedras, o teto com seu musgo verde, as incisões em madeira da igreja: tudo isto constitui o castelo. Nada disto pode ser mudado pelo fato de que Hamlet vivesse neste lugar – e, no entanto, tudo é diverso. De improviso, os muros e os bastiões falam uma linguagem diversa... No entanto, tudo o que sabemos de Hamlet é que seu nome aparece numa crônica do século treze... Mas, todos conhecemos as grandes questões que Shakespeare lhe pôs na boca, os abismos humanos que teria revelado, e, por isso, também ele devia encontrar um lugar sobre esta terra – aqui, em Kronberg”.

Na base do mundo mecânico

Naturalmente, esta história nos conduz a um problema que é tão antigo quanto a própria humanidade: o significado da realidade. E isso não pode ser dissociado de outro: o significado do tempo. Para nós, o tempo e a humana existência, e, por conseguinte também a realidade, são conceitos indissociáveis. Mas, é necessário que seja assim? Cito uma troca epistolar entre Einstein e seu velho amigo Besso. Nos últimos anos, Besso retornava com muita freqüência sobre o tema do tempo. O que é o tempo? O que é a irreversibilidade? Pacientemente Einstein respondia sempre: a irreversibilidade é uma ilusão, uma impressão subjetiva que deriva de condições iniciais excepcionais. A morte de Besso poucos meses antes da de Einstein, teria interrompido aquela correspondência. Na morte do amigo, numa carta comovente à irmã de Besso e ao filho, Einstein escrevia: “Miguel deixou este estranho mundo, precedendo-me um pouco. Não é importante. Para nós, físicos convictos, a distinção entre passado, presente e futuro é somente uma ilusão, embora persistente”. Somente uma ilusão. Devo confessar que esta frase me atingiu profundamente. Parece-me que ela exprime de maneira extraordinariamente eficaz o poder simbólico da mente.

De fato, em sua carta a Besso, Einstein reiterava o que Giordano Bruno escrevera no século dezesseis e que se tornou o credo da ciência: “È, pois, o universo uno, infinito, imóvel. Una, digo, é a possibilidade absoluta, uno o ato, una a forma ou alma, una a matéria ou corpo, una a coisa, uno o ente, uno o máximo e ótimo; o qual não deve poder ser compreendido; e, no entanto, infindável e interminável, e, portanto, infinito e interminado e, por consequência, imóvel”. Por longo tempo, a visão de Giordano Bruno teria dominado a visão do mundo ocidental. E teria conduzido ao mundo mecânico com os seus dois elementos de base: as substâncias imutáveis como os átomos, as moléculas ou as partículas elementares e o movimento. É verdade, com a teoria dos quanta, intervieram muitas mudanças: todavia, as características de fundo desta concepção permanecem inalteradas. Mas, como compreender a natureza sem tempo que põe o homem fora da realidade que ele descreve? (...)

Em "Cemitério marinho", Paul Valéry descreve a luta do homem para entender-se com o tempo enquanto duração, com seu arco limitado aberto sobre nós. Nos Cadernos – aqueles numerosos volumes de apontamentos que escrevia ao amanhecer – retorna sempre e de novo sobre o problema do tempo: “Duração, ciência a construir-se”. Em Valéry há um senso profundo do inesperado. É verdade, ele não podia contentar-se com um determinismo universal que pressupõe, em certo sentido, que tudo está dado. Escreve Valéry: “O determinismo – sutil antropomorfismo – diz que tudo acontece como numa máquina, do modo como posso compreendê-la. Mas, cada lei mecânica é no fundo irracional – experimental... O sentido da palavra determinismo é tão vago quanto o da palavra liberdade... O determinismo rigoroso é profundamente deísta. Porque precisaríamos de um deus para perceber este encadeamento infinito completo. É preciso imaginar um deus, uma face divina para imaginar esta lógica. É um ponto de vista divino. De modo que o deus, subtraído à criação e à invenção do universo, é restituído para a compreensão deste universo. Quer se queira ou não, um deus é colocado necessariamente no pensamento do determinismo – e é uma rigorosa ironia”.

A herança do século dezenove

Valéry faz uma observação muito importante: o determinismo é possível somente para um observador colocado fora de seu mundo – enquanto nós descrevemos o mundo a partir do interior. O tema do tempo não é um fenômeno isolado na primeira parte do século vinte: podemos citar aleatoriamente, além de Valéry, Proust, Bergson, Teilhard, Freud, Peirce ou Whitehead. Como temos dito, o veredicto da ciência é definitivo: o tempo é uma ilusão. No entanto, como é possível? Estamos verdadeiramente constrangidos a escolher entre uma realidade sem tempo, que conduz à alienação humana, e uma afirmação do tempo que parece romper com a racionalidade científica?

A maior parte da filosofia européia de Kant a Whitehead aparece como uma tentativa de superar de qualquer modo a necessidade desta escolha. A distinção kantiana entre mundo numênico e mundo fenomênico era um passo nesta direção, como também a idéia de Whitehead de filosofia do processo. Nenhuma destas tentativas teve grande sucesso e o resultado é a progressiva decadência da “filosofia da natureza”. Concordo plenamente com Leclerc quando ele escreve: “Neste século sofremos as conseqüências da separação entre ciência e filosofia, que se seguiu ao triunfo da física newtoniana do século dezessete. E não é somente o diálogo entre ciência e filosofia que sofreu”. Eis uma das origens da dicotomia entre as duas “culturas”. Existe uma oposição irredutível entre a razão clássica com sua visão não-temporal e nossa existência com sua visão do tempo bem representada pela pirueta que Nabokov descreve em "Olha os arlequins". Mas, na ciência está acontecendo algo dramático – uma coisa tão inesperada quanto o nascimento da geometria, ou quanto a visão grandiosa do cosmo, como foi expressa na obra de Newton. Tornamo-nos progressivamente sempre mais cônscios do fato de que, em todos os níveis, das partículas elementares até a cosmologia, a ciência está redescobrindo o tempo.

Um diálogo entre ciências naturais e ciências humanas, incluindo as artes e a literatura, pode ser um novo início e talvez desenvolver-se em algo frutuoso, como foi na Grécia clássica ou durante o século dezessete com Newton e Leibniz. Para compreender as mudanças do nosso tempo, pode ser útil partir da herança científica do século dezenove. Esta herança inclui duas contradições fundamentais, às quais não tem sido dada nenhuma resposta. O século dezenove foi essencialmente o século da evolução. Pense-se no trabalho de Darwin no campo biológico, de Hegel em filosofia ou na formulação da famosa lei da entropia em física.

Comecemos por Darwin. À parte a importância de "A origem das espécies", publicado em 1859, há um elemento geral da concepção darwiniana que quero sublinhar: a idéia de flutuações espontâneas nas espécies biológicas que, através da seleção, conduzem a uma evolução biológica irreversível. Seu modelo conjuga, portanto, dois elementos: a idéia de flutuação, de casualidade, de processo estocástico, e a idéia de evolução, de irreversibilidade. Digamos imediatamente que, do ponto de vista biológico, esta idéia conduz a uma evolução que corresponde a uma crescente complexidade, à auto-organização.

Isto está em aberto contraste com o significado que geralmente é associado à lei do aumento entrópico, do modo como foi formulada por Clausius em 1865. O elemento fundamental desta lei é a distinção entre processos reversíveis e irreversíveis. Os processos reversíveis não conhecem nenhuma direção privilegiada no tempo. De outro lado, os processos irreversíveis implicam uma flecha do tempo. Tal distinção é retomada na formulação da segunda lei da termodinâmica que postula a existência de uma função, a entropia, a qual num sistema isolado pode apenas aumentar a causa da presença de processos irreversíveis, permanecendo, ao invés, inalterada no caso de processos reversíveis. Por conseguinte, num sistema isolado, quando o sistema chega ao equilíbrio e os processos irreversíveis chegam a uma conclusão final, a entropia atinge seu máximo.

Probabilidade e irreversibilidade

Um dos maiores físicos teóricos de todos os tempos, Ludwig Boltzmann, foi quem deu a primeira interpretação microscópica do aumento da entropia. Ele se dedicou à teoria cinética do gás com a idéia de que o mecanismo da mudança, da evolução, deva ser descrito em termos de colisões entre moléculas. Sua descoberta mais importante foi que a entropia está estreitamente coligada à probabilidade. De novo, como em Darwin, evolução, probabilidade e casualidade estão estreitamente conexas. No entanto, o resultado de Boltzmann contradiz o de Darwin. A probabilidade chega ao seu máximo quando é atingida a uniformidade. Pense-se num sistema de duas caixinhas que comunicam através de um furinho. Obviamente, o equilíbrio será atingido quando o número de partículas nas duas caixas for o mesmo. Portanto, a aproximação ao equilíbrio corresponde à destruição das condições iniciais, ao esquecimento das estruturas iniciais, em oposição a Darwin, para o qual evolução significa criação de novas estruturas. Assim chegamos à primeira questão, à primeira contradição que herdamos do século dezenove: como podem Boltzmann e Darwin ter ambos razão? Como podemos descrever, de um lado, a destruição das estruturas e, do outro, os processos que comportam a auto-organização? No entanto, ambos os processos usam elementos comuns: a idéia de probabilidade (expressa, na teoria de Boltzmann, em termos de colisão entre partículas) e a irreversibilidade, que emerge como resultado da descrição probabilista.

Mas, antes de explicar de que modo Boltzmann e Darwin tenham ambos razão, analisemos a segunda contradição. As problemáticas que enfrentamos agora são muito mais profundas do que a oposição entre Boltzmann e Darwin. O protótipo da física clássica é a mecânica clássica, o estudo do movimento, a descrição das trajetórias que conduzem um ponto da posição A à posição B. Os dois traços fundamentais da descrição dinâmica são o seu caráter determinista e o reversível. Uma vez indicadas as condições iniciais, podemos predizer rigorosamente a trajetória. Portanto, em nível dinâmico, parece não haver lugar para a causalidade ou para a irreversibilidade. De certo modo, a situação permanece idêntica na teoria dos quanta, onde falamos de função de onda e não de trajetórias. De novo, a função de onda evolui segundo a lei determinista reversível.

Um novo diálogo entre homem e natureza

Consequentemente, o universo aparece como um grande autômato. Já dissemos que, para Einstein, o tempo no sentido de tempo direcional, de irreversibilidade, era uma ilusão. Geralmente, como afirmam muitos livros e publicações, o comportamento clássico ante o tempo tem sido uma espécie de desconfiança. Num universo ambidestro, Martin Gardner escreve que a segunda lei da termodinâmica só torna certos processos improváveis, mas jamais impossíveis. Em outras palavras, a lei do aumento da entropia só se refere a uma dificuldade prática, sem nenhum fundamento profundo.

Analogamente, em "O acaso e a necessidade", Jacques Monod exprime a idéia de que a vida seja apenas um acidente na história da natureza. É uma espécie de flutuação que, por razões não muito claras, está em condições de se manter. É certo que, qualquer que seja nossa compreensão de problemas tão complexos, nosso universo tem um caráter pluralista. As estruturas podem desaparecer como num processo de difusão, mas também podem nascer como em biologia e, de modo ainda mais visível, nos processos sociais. Alguns fenômenos são bem descritos por equações deterministas, como no caso dos movimentos planetários; mas alguns outros, como a evolução biológica, podem comportar processos estocásticos. Mesmo o cientista mais convicto da validez das descrições deterministas hesitaria em afirmar que no momento do Big Bang a data desta minha conferência já teria estado inscrita nas leis da natureza.

Vivemos num único universo. Começamos a ver que a irreversibilidade e a vida estão inscritas nas leis fundamentais, também em nível microscópico. Além disso, a importância que atribuímos aos vários fenômenos que podemos observar e descrever é muito diversa, para não dizer oposta, de quanto sugeria a física clássica, para a qual os processos eram deterministas e reversíveis. Os processos que implicavam causalidade ou irreversibilidade eram considerados exceções, meros artefatos. Hoje, por toda parte vemos em ação processos irreversíveis, de flutuação. Os modelos considerados pela física clássica são para nós limitados a situações que podemos criar artificialmente, por exemplo, pondo certa quantidade de matéria numa caixinha e esperando que ela atinja o equilíbrio.

O artificial pode ser determinístico e reversível. O natural contém elementos essenciais de casualidade e de irreversibilidade. Isto conduz a uma visão da matéria na qual ela não é mais passiva, como afirmava a velha visão mecanicista do mundo, mas está associada à atividade espontânea. Esta mudança é tão profunda que creio que se possa verdadeiramente falar de um novo diálogo entre o homem e a natureza. (...)

Se tivéssemos solicitado a um físico, somente poucos anos atrás, o que a física está em condições de explicar e o que deixa em aberto, provavelmente teríamos podido ouvir responder que obviamente não conhecemos suficientemente as partículas elementares ou as características cosmológicas do universo em seu todo, mas entre estes dois extremos os nossos conhecimentos são bastante satisfatórios. Hoje, uma minoria crescente (à qual também eu pertenço) não compartilharia de um comportamento tão otimista. Pessoalmente estou persuadido que apenas nos encontramos no início de uma compreensão mais profunda da natureza em torno de nós, e isso me parece ser de enorme importância para incluir a vida na matéria e o homem na vida. (...)

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Um estudioso da complexidade entre química, física e ecologia Muito conhecido por suas teorias referentes à termodinâmica aplicada aos sistemas complexos (que lhe valeram o Nobel em Química em 1977), Ilya Prigogine nasceu em Moscou em 1917, mas transcorreu grande parte de sua vida em Bruxelas, onde faleceu em 2003, após ter sido diretor do centro de mecânica estatística na Universidade do Texas em Austin, e um dos fundadores do Center for Complex Quantum Systems. O texto, do qual vos propomos amplos excertos nesta página, faz parte de um dossiê que o último número de “Lettera Internazionale” (www.letterainternazionale.it), a sair nas livrarias nos próximos dias, dedica ao tempo e que compreende também escritos de Jerome K. Jerome e André Malraux. A revista dedica, além disso, um dossiê ao “Economia-Pianeta”, no qual intervêm entre outros Serge Latouche, Wolfgang Sachs, Muhammad Yunus, Amitav Ghosh.

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